A FILHA, O LEÃO E O RELÓGIO

Para ouvir o som clique no botão ao lado.

O ano escolar recém começara, era o dia de levar a filha ao colégio e estava atrasado. Chegou esbaforido encontrando-a na calçada pronta para entrar num táxi com a mãe. Pegou a criança, conseguiu vencer a resistência materna, que não queria entregá-la, deu dez reais ao motorista do táxi e partiram rumo à escola.

Era visível o nervosismo da menina. A preocupação pela demora do pai, a decisão de chamar um táxi, a consciência que iria chegar atrasada e, ainda, a cena na calçada até embarcar no carro do pai, contribuíram para isso.

Ele tentando disfarçar o constrangimento resolveu falar, para tornar o clima menos tenso: “Filhinha desculpa pela demora, mas o papai teve que enfrentar um leão”.

Ela olhou incrédula e ele prosseguiu: “Foi difícil, era um leão grande, então resolvi lhe dar meu relógio e consegui me liberar. Por isso demorei. Olha aqui”. Mostrou o pulso vazio, pois durante a narrativa retirara o relógio e escondera no bolso, sem que ela notasse.

A criança ficou muito impressionada. Na sua inocência infantil acreditara na história e nas dificuldades do pai. Fez mais duas ou três perguntas e chegaram à escola.

Recebeu uma ligação da ex-esposa, trocaram mais um diálogo áspero e superou a questão. O que realmente começava a incomodá-lo foi ter mentido para a filha, usando uma fantasia parecida com a história do Mágico de Oz. Estava chateado.

O problema de consciência foi aumentado, não conseguindo concentrar-se no trabalho. Depois de algum tempo, como quem cumpre uma penitência, resolveu desfazer-se efetivamente do relógio. Tirou uma foto com o celular e colocou-o num desses sites de venda da internet.

À tardinha contou para um amigo o que ocorrera, culminando com venda do relógio, que, coincidentemente, tinha sido presente num 12 junho distante.

O amigo, sem dizer a ele, arrematou-o no site.

Ele recebeu o dinheiro e resolveu dar continuidade na história, para tentar resolver este assunto que o atormentava. Assim, em outro dia, quando levava a filha à escola, contou que o leão não estava feliz com o relógio. Que passava todo o tempo vendo as horas, preocupado com pontualidade e vivendo de um jeito que não era como vivem os leões e, então, resolvera trocar o relógio com o dono de uma papelaria por uma porção de cadernos e material escolar. Porém, como o leão também não precisava daquilo, dera para ele. E concluiu dizendo: “Dá uma olhadinha aí no bagageiro”.

Ela levantou-se do banco e viu vários cadernos, blocos, algumas mochilas, ocupando parte do compartimento de malas da camioneta.

“Pai, o que vamos fazer com isso?” Perguntou curiosa.

Ele, num misto de solenidade e mistério, respondeu:

“Olha, antes que o leão se arrependa, vamos entregar lá onde estão recolhendo material escolar para crianças carentes”. E assim fizeram.

Quando contou ao amigo o ocorrido, este sorriu e disse que arrematara o relógio e iria devolvê-lo. Ele agradeceu, mas não aceitou, apesar da insistência do outro. E comentou sorrindo:

“Agradeço teu gesto, mas não o quero mais, faça o quiser com ele. Ah, tem mais, nem é mais meu...agora é do leão”.

Música: OVER THE RAINBOW- Israel Kamakawiwo



Compartilhar:


IR AO ÍNDICE