A NAVALHA DO SIGMUND

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Entrei no antiquário e saudei o Gaspar com a brincadeira de sempre.

“Então, o que há de velho”?

Ele respondeu com a voz mais baixa que de costume: “Tenho algo muito especial, consegui com um colega uruguaio, que deixou para que eu vendesse”.

Abriu cuidadosamente um embrulho em papel de seda bem amassado, onde havia uma velha navalha e entregou-me para examinar.

Era efetivamente antiga, a lâmina estava oxidada e tinha gravado Solingen, provavelmente o local de fabricação. Não era bem uma navalha, parecia mais uma espécie de bisturi.

Antes que eu dissesse qualquer coisa explicou: “É a navalha de um velho rabino de uma cidadezinha da Áustria”.

Contou que seu colega havia adquirido de um colecionador argentino, que tinha algumas raridades, mas estava se desfazendo por dificuldades financeiras.

Interrompi dizendo: “Mas o que tem de importante esse instrumento”?

Solenemente, mostrando um papel com texto incompreensível e uma assinatura idem, disse: “O documento confirma a autenticidade. Está em alemão, mas podes traduzir, foi escrito por um líder da comunidade judaica austríaca”. Então assumiu um ar ainda mais solene e revelou o motivo da importância do objeto: “Foi com ela que o rabino fez a circuncisão do Freud” e complementou: “o pai da psicanálise”.

Então se instaurou o nosso grande debate. Eu dizendo que poderia ser falso e ele sustentando que era verdadeiro e, por isso, relevante para a civilização ocidental.

No meio da discussão ele trouxe argumentos que eu desconhecia, e que mudaram minha compreensão da matéria e encerraram o debate.

Perguntou abruptamente. Quantos quadros atribuídos a Picasso estão nas paredes de seus proprietários? Seguramente dez vezes mais do que ele pintou. Achas que ser verdadeiro ou não, muda a satisfação de seus donos em contemplar as pinturas?

Antes que eu respondesse, concluiu com ênfase:

Não, não e não. Afinal, o que vale mais, um atestado fornecido por um especialista ou a beleza do quadro em si?

Pegou a navalha na mão e prosseguiu: Que diferença faz se essa navalha cortou ou não cortou o prepúcio do Sigmund? Quem comprá-la, acompanhada dessa carta, vai acreditar que tem a navalha histórica. Isso é que importa. Não estamos num instituto de criminalística nem num leilão da Sotheby’s, mas proporcionando prazer a alguém que admira a obra dele.

No auge de sua argumentação revelou-me que aproximadamente uma centena de objetos fake do consultório do Freud, decoram os gabinetes de psiquiatras pelo mundo afora, especialmente nos Estados Unidos. Disse que até uma bagana do charuto dele, dentro de um bloco de acrílico, viu num catálogo. E, dando um sorriso maroto, concluiu: “Ora se ele conseguiu interpretar os sonhos, não serão seus seguidores que colocarão a realidade acima deles”...

Cinco meses depois encontrei o Gaspar, que me contou ter vendido a navalha, e, pedindo sigilo, completou:

“O novo proprietário pagou dois mil dólares, um valor de ocasião. Mas estou proibido de revelar o seu nome. E rindo concluiu: “Viu só, a navalha era importante mesmo, desde que ela cortou um pedacinho do pau do cara, ele ficou o resto da vida fixado nesse tema”...

Música MEMORY – Barbra Streisand



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