A VIDA QUE ARDE NA MORTE

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Eram só as duas. Anita e Lizete. Mãe e filha. Só eram importantes uma para a outra e para o IBGE, quando havia censo. O pai morrera deixando pequena pensão para a viúva, com o que ambas viviam. A filha, muito abafada pelos pais, não concluiu estudos, nem trabalhava. Fazia apenas alguns trabalhos de artesanato, que não conseguia vender.

Quando jovem teve alguma formosura, ensaiou um namoro, mas os pais não permitiram, pois ele não era judeu. Ela se submeteu, era uma ordem sem diálogo e com ameaças. Seu nome era Flávio e ela nunca o esqueceu. Acreditava que ele também não a esquecera, pois tinha certeza que gostava dela. Porém o perdeu de vista e nunca mais soube dele. O assunto não era falado em casa.

Alguns anos depois o pai faleceu. A vida continuava sem muito sentido. Cuidava da mãe e ninguém cuidava dela, nem mesmo ela cuidava de si própria. Sem amigas, nem parentes, deixavam o tempo escoar. Assistiam televisão, iam ao supermercado e levavam a vida assim, deixando que a vida as levasse.

Em meio às novelas e nos seus sonhos, lembrava do Flávio e desejava saber dele. Procurou em lista telefônica, depois que surgiu a internet fez buscas de todos os meios, mas não teve sucesso.

O tempo passou e seguiu passando, a mãe foi enfraquecendo e sua saúde piorando. A morte significaria não só a solidão, como o fim da pensão, que era a única renda que tinham. Era uma ameaça que estava anunciada.

Revelando um talento insuspeitado, talvez inspirada pelos filmes que assistia na TV, ou movida pela necessidade, Lizete foi pacientemente urdindo um plano, para não ser surpreendida pela morte da mãe que se aproximava, e não ficar sem a renda que garantia a subsistência.

Começou pela mudança de endereço, para um apartamento igualmente modesto, porém num bairro mais distante, onde não eram conhecidas.

Fez fotos de ambas e, como sempre fora habilidosa nos trabalhos manuais, usando um plástico adesivo, trocou a dela com a da mãe nas respectivas carteiras de identidade. Assim, com este expediente tão simples, mas poderoso e eficaz, transformou-se civilmente na Anita, enquanto a mãe passava a viver seus últimos dias como se fosse Lizete.

Oito meses depois da mudança a mãe faleceu.

Ela que tratara da morte do pai, conhecia as providências que deveria tomar. Tudo foi feito.

Recusou que seu enterro fosse no cemitério judaico, como uma pequena vingança em relação à mãe. Colocou anúncio no jornal, no qual “os familiares” participavam o falecimento de Lizete e convidavam para os atos fúnebres no crematório. Assim preparou as suas exéquias, com todos os requintes.

Usando peruca, óculos escuros e outros recursos, que são fáceis para as mulheres, ficou quase irreconhecível. E, assim disfarçada, foi espiar o andamento do seu próprio velório.

Prudentemente permaneceu o maior tempo no corredor, como se estivesse participando da cerimônia de uma sala ao lado.

Podia ver o que ocorria em seu velório, onde estavam presentes: uma ex-empregada do tempo que o pai era vivo, duas colegas do colégio, que nem lembrava bem, o zelador do prédio atual, um primo da mãe bastante idoso e mais algumas pessoas, cuja presença lhe surpreendeu, não imaginando que lembrassem dela ou que compareceriam à sua cremação.

Era uma sensação muito estranha, que lhe trouxe de volta, por instantes, a autoestima, que já a abandonara há tanto tempo.

Teve desejos de entrar na sala, agradecer e abraçar cada uma daquelas pessoas, que se importavam com ela, mas o que só viria a saber depois de morta. Aquela surpresa lhe deixou alterada, procurava controlar-se para não perder a calma e não ser notada.

Foi quando viu chegar um senhor calvo, e pouco à vontade, que olhou em volta, procurando verificar se os homens usavam solidéu, para saber se deveria também cobrir a cabeça. Na dúvida colocou o boné que trazia na mão, que escondeu a careca e, lhe rejuvenesceu a fisionomia.

Era ele.

Desde que pensara naquele plano, tão pacientemente elaborado, esse era um ponto que a excitava, uma esperança acalentada, agora transformada numa espécie de sonho mórbido. Era um prêmio, um presente que ela não estava acostumada a ganhar, mas que se permitiu sonhar. O Flávio talvez até pudesse aparecer, era muito improvável. E ele apareceu.

Ela tremia e não tirava os olhos da cena, registrando cada gesto.

Não trazia flores, pois devia saber que os judeus não homenageiam com flores aos seus mortos. Do corredor onde ela estava, podia ver seu rosto, mas ele, lá de dentro, dificilmente poderia reparar na presença dela ali fora.

Ele aproximou-se do caixão. Permaneceu imóvel por um tempo. Seus olhos se encheram de lágrimas. Ficou ali parado alguns instantes, passou a mão nos olhos, depois usou um lenço.

Recuou alguns passos e persignou-se num gesto quase instintivo, um pouco constrangido, pois talvez não fosse adequado naquela circunstância, pois a morta era judia. E fora exatamente essa diferença que os separara.

Ela assistia a tudo com muita emoção. Aquela presença desejada, mas ao mesmo tempo inesperada, fizera com que ela ressuscitasse da sua existência tão medíocre.

Tinha vontade de gritar, coisa que nunca ousara fazer, ou então rir e até chorar. Mas não podia, ela estava morta. Formalmente morta, dentro daquele caixão que iria arder em poucos minutos.

Desejava que ele abrisse o caixão, que a encontrasse ali, que a beijasse como nos contos, nas fantasias das princesas e heroínas das novelas com quem nunca se permitira comparar ou idealizar. Agora estava vivendo este sonho impossível, ele o príncipe, ela a bela adormecida. Queria o beijo mágico que pudesse lhe despertar para a vida, a vida que nunca vivera e que agora nem mais existia.

Ele, próximo da porta, permanecia imóvel e respeitoso, cabisbaixo. Para ela era impossível medir quanto tempo durou tudo aquilo. Talvez estivesse esperando que a cena fosse interrompida, para apresentação de comerciais, como sempre fora na sua vida.

Quem interrompeu não foi propaganda, mas os funcionários que vieram para levar o caixão ao local da cremação. Era chegado o momento.

Os presentes também saiam da sala acompanhando o corpo.

Para não cruzar com as pessoas, ela afastou-se do corredor e dirigiu-se ao toalete. Lá se olhou no espelho, respirou fundo e tomou um pouco de água com as mãos, com elas molhou os pulsos e levemente a testa. Só então, alguns minutos depois, é que foi até o salão do crematório, ver quem estava lá.

Ele já tinha ido embora.

A cerimônia não demorou e o caixão foi introduzido no local onde seria queimado. Ela não esperou que as pessoas saíssem e, antecipando-se aos demais, foi embora.

Apesar de morta e cremada nunca se sentira tão intensamente viva.

MÚSICA: MADAME BUTTERFLY - Puccini– Maria Callas



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