ADVOGADOS QUE GOSTAM DE ESCREVER

Para ouvir o som clique no botão ao lado.

A questão tem raízes freudianas. Meu pai, antes de ser advogado, era escritor e poeta, seu envolvimento crescente com a advocacia não lhe permitiu voltar a escrever. Foi uma pena. Guardo a lembrança de uma entrevista dele no extinto jornal A Hora, cujo título era algo parecido com “Um escritor que o foro absorveu”. Aquilo me marcou bastante.

Ele publicou três livros. “Eu e Tu” e “Preces Profanas” ambos de poesia e “Numa clara manhã de abril” romance autobiográfico. Era poeta, mas com poesia não podia ganhar a vida.

Depois que começou a advogar foi abandonando a literatura e não publicou mais nada. Isso me impressionou. Não tenho a pretensão de chegar perto do seu talento, mas sempre gostei de escrever. Diferentemente dele não faço poesia, minha preferência é o humor.

Talvez até inconscientemente, para não repetir o que lhe aconteceu, vou escrevendo meus textos que envio a amigos pela internet e, também, nas minhas petições, quando possível, recorro a algum recurso literário ou de humor, como forma de expor uma idéia.

Agora com esse livro Na nuvem, estou tentando não me deixar absorver pelo foro e dividir com os amigos os textos que escrevi.

Há uma parte do “livro” que é de crônicas e contos, assim com há outra que reúne trechos de petições e outras publicações relacionadas com o direito, a advocacia e a atuação profissional. Houve o cuidado de colocar este material sem identificar as partes e também tornar plenamente compreensível para quem não é da área jurídica.

Portanto, este livro ” Na nuvem” também é uma forma de prestar homenagem ao meu pai.

Localizei o seu diário, cuja página inicial está acima, nele há um relato em que descreve a cidade da sua janela de hotel. É uma pequena mostra do seu talento e sensibilidade.

É curto, tem pouco mais de meia página de prosa, mas que exala o suave perfume da sua poesia. Convido para que o leiam, a seguir.

Bento Gonçalves é um lugarzinho encantador. Gosta-se daqui naturalmente. Como duma mulher bonita ou de qualquer coisa parecida.

O clima é ameno e a visão panorâmica admirável.

A vila fica modestamente em um vale. Lembra pela simetria e arborização das ruas principais uma cidade em miniatura.

Quase todas as casas assobradadas são de estilo ainda colonial, tipicamente italiano. Construções modernas raríssimas. Daí o aspecto singular deste lugarejo que parece ter qualquer coisa de bucolismo europeu.

A minha janela de hotel, formando um retângulo, exibe um lindo pedaço de paisagem que não me farto de rever. Sobretudo à luz crepuscular ou, à hora indecisa da madrugada, que tem a sedução das coisas incriadas.

Mas Bento ainda revela um aspecto original. Deliciosíssimo.

Não costuma dormir ao relento, como suas irmãs. Parece ter um pudorzinho provinciano e caprichoso de mulher...

Quando a vida se recolhe para o repouso noturno, uma cerração envolve a toda vila. Casas, árvores e morros desaparecem sob o manto providencial. Tudo então parece se diluir sob a neblina. Tem-se a impressão que num instante a vida retrocede às eras remotíssimas que precederam o verbo da criação. E este pequenino mundo se torna amorfo e incolor. E um grave e escuro silêncio, maternalmente, começa a embalar este caos aparente.

Mas, pela manhã, ao badalar sonoro dos sinos, a vida renasce como por encanto.

As brumas noturnas vão descobrindo a pouco e pouco a paisagem. E a vila ressurge úmida de orvalho e banhada em luz. Fresquinha e contente. Tão contente como esta gente simples nas claras manhãs de domingo, depois da missa das dez...

Copiado do diário de Marcos Iolovitch, escrito quando era Juiz Distrital de Bento Gonçalves no ano de 1932.

Música: EUROPA – Gato Barbieri



Compartilhar:


IR AO ÍNDICE