ANDANDO NOS TRILHOS

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Fui obrigado a parar o carro em razão das obras na rua, havia um buraco enorme. Fiquei olhando e lá dentro consegui identificar um pedaço de trilho, dos bondes que por ali trafegaram há muitos anos. Era um só, não se via o outro que viveu sempre ao seu lado e que dava sentido para sua existência. Estava sujo e enferrujado sem o brilho de quando ficava exposto, polido constantemente pela fricção das rodas, exibindo orgulhoso sua intrínseca pujança metálica.

Aquela visão teve um imediato efeito nostálgico, fazendo lembrar o tempo em que se andava de bonde; muitos passageiros e até o motorneiro, o cobrador e o fiscal usavam gravata, todos seguindo metodicamente seu destino, que a inexorabilidade dos trilhos conduzia de forma regular e inalterada. As imagens do passado foram me levando para o lado romântico e imperceptivelmente estava sendo induzido a concluir que aqueles tempos eram melhores. Porém, a rigidez do roteiro inalterado dos trilhos não permitiu resvalar tão facilmente para o equívoco impregnado de saudosismo.

A partir daquele momento, o bonde tornou-se uma metáfora da vida. O lado formal e previsível, que o caminho fixado no chão impunha para um destino inexorável e previamente traçado, era um retrato aproximado daquele tempo. Deixávamo-nos seguir pelo que já estava estabelecido, sem questionar ou assumir riscos, acomodados no conforto da previsibilidade.

Pelo bem ou pelo mal, hoje não há mais trilhos nem bondes. Muitas coisas boas da vida sem pressa e da cordialidade se perderam com a mudança. Porém a ausência da rota prévia, da rigidez férrea do destino traçado, cedeu espaço ao encanto da imprevisibilidade e o desafio de estabelecer caminhos. Há os que querem um patrão, um emprego, um estado, um partido, um bonde que pense por eles, que lhes poupem da necessidade de decidir, de agir por vontade própria e, principalmente, de correr riscos. Querem um bonde que lhes conduza, iludindo-se que o destino “Independência” é apenas um bairro e que todos voltavam sempre ao “Centro”.

Tem gente que até hoje está esperando o bonde... Desconhecem que o vento da liberdade deixa um gostinho bom na boca, para quem enfrenta desafios e saboreia o prazer de viver com intensidade.

Desci desse bonde imaginário, quando sai do carro. Lembrei que essa reflexão começou de forma prosaica, ao ver um pedaço de trilho na rua e, sorrindo, constatei que o pensamento livre pode levar do buraco no chão ao topo da montanha.

Música – A WHITER SHADE OF PALE – Joe Cocker



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