CABELO MOLHADO

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As mães costumavam advertir os filhos para não ficar com o cabelo molhado, para evitar de contrair gripe. Mal sabiam elas que essa sabedoria teria utilidade futura.

No tempo em que não havia violência e andar na rua não representava perigo, as turmas tinham ponto de encontro e ficavam à noite batendo papo até altas horas. Na Protásio Alves havia o Coruja, que servia cachorro quente com queijo derretido, chamado pastor, e bauru na chapa; ficava aberto até as três da madrugada.

Depois da boate, voltando da casa da namorada ou saindo do motel, era comum o pessoal passar lá para um lanche. Havia alguns códigos não escritos, mas que todos entendiam. Quando a companhia era bonita e o sujeito queria se exibir, costumava estacionar perto do poste, embora elas costumassem fingir sintonizar o rádio, inclinando a cabeça para não ser reconhecidas. Quando alguém estacionava mais distante da luz, é porque que não queria que a vissem, fosse por receio da crítica ou para não ser identificada.

Mas havia uma senha, que era o passaporte para o prestígio: o cabelo molhado. O cara descia do automóvel, pedia um pastor para ela e um bauru para ele, levava o refrigerante até o carro, voltando depois para buscar o lanche. Alguns pediam para acrescentar um ovo e até os que bebiam cerveja Caracu, o que devia significar que a noitada fora intensa. A cabeleira úmida naquela hora da madrugada era a senha infalível, que estava voltando do motel. Seu desfile na calçada tinha implícito o conhecimento que todos eram sabedores desse fato. Quando partia, dava uma breve olhada para trás, para assegurar-se do seu sucesso.

A cada chegada de alguém se sucediam os comentários, havia os que deixavam a música tocando em volume alto no carro, para mostrar que estiveram na boate; em geral uma certa dose de exibicionismo era oferecida para a plateia ocasional.

O magro Ronaldo não era propriamente alguém que fazia sucesso, mas ambicionava a admiração dos demais. Então começou a aparecer mais tarde com o cabelo molhado e sozinho. Sem que ninguém perguntasse, dizia que tinha deixado ela em casa e pedia um bauru com ovo. Algumas vezes repetiu essa cena.

O pessoal desconfiou que ele molhava o cabelo no banheiro de algum posto de gasolina, para protagonizar aquela encenação. Foi quando resolveram aprontar para ele, inspirados nas antigas recomendações maternas.

Numa noite muito fria de junho surgiu com a melena encharcada. Então foi chamado para a rua, a pretexto de mostrarem a tala larga de um carro. E ali ficaram espichando assunto, numa conversa que durou longuíssimos 20 minutos. Espirrou duas vezes.

Apostando na gripe, no dia seguinte foram à casa dele convidar para sair com umas candidatas em concurso de modelo. Ele, se lamentando, disse que desejava muito ir, mas não seria possível, pois pegara um resfriado fortíssimo.

Música – YELLOW RIVER – Christie



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