CINE RIO BRANCO - MOMENTO TORNATORE

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Fui numa agência bancária no bairro da minha infância. Enquanto aguardava atendimento, vi um rosto familiar que não conseguia lembrar quem era. Foram alguns momentos com a desagradável sensação de tentar situar a pessoa, perceber que a memória falha, somada à vontade de saber quem é.

Lembrei a frase do pensador espanhol, que um ex-governador gaúcho citava com se fossem dois: “o homem é ele e sua circunstância”, pois faltava exatamente isso, para que pudesse situá-lo. Tentei imaginá-lo mais moço com cabelo escuro e isso acabou funcionando. Finalmente consegui identificar, era o lanterninha do cinema Rio Branco, já bem mais velho e magro, talvez ali buscando sua também magra aposentadoria.

Recordei as matinés, que na contraditória tradução francesa, eram sessões à tarde de programação dupla.  Um filme nacional ou comédia americana e sempre um faroeste, hoje chamado de “western”. Trocávamos gibis, comprávamos balas Neugebauer do baleiro, devidamente fardado, e havia aquela algazarra inocente e ruidosa própria da infância.

No momento em que a cavalaria atacava os índios, ou os amigos salvavam o mocinho em desvantagem, a plateia gritava e sapateava, só interrompendo com o piscar da lanterna do fiscal, que agora estava na fila do banco, sem a sua circunstância de outrora. Acabaram as sessões da tarde e os cinemas de bairro, foi-se com eles a ilusão de tentar entender o mundo dividindo-o entre mocinhos x bandidos, pois tantos que se proclamavam mocinhos revelaram-se bandidos, quando caiu a máscara.

Aquele homem modesto e magro, munido apenas de uma lanterna, conseguia silenciar uma multidão barulhenta, apenas com um piscar de luz. Pretensiosamente pensei no mito da caverna de Platão ou na lanterna de Diógenes, mas a simplicidade e pureza da lembrança pueril não comportava sofisticação. E ali estava o personagem da infância na minha frente em carne e osso, com os ossos em destaque.

Identifiquei-me e falei do tempo do cine Rio Branco. Ele tímido limitou-se a sorrir. Perguntei seu nome, pois nos referíamos apenas como “o fiscal”, disse que era Manoel. O diálogo foi interrompido pelo caixa que anunciou sua vez. Foi atendido e despediu-se com um aceno de mão.

Enquanto ele saia pela porta giratória, era minha mente que girava naquele misto de lembranças esparsas. Junto com Oscarito, Grande Otelo, Eliana, John Wayne, Gary Cooper, Kim Novak, Audrey Hepburn, Joselito, Jerry Lewis e tantos outros estava o “seu” Manoel, com seu indefectível terno cinza e a lanterna na mão. Na minha constelação de astros do cinema ele tem assegurado seu lugar também.

Fiquei refletindo como um simples piscar da lanterna, daquele homem frágil e humilde, impunha ordem e fazia silenciar a bagunça. E com saudade lembrei-me de duas palavras, que os bandidos atuais expulsaram de nossas vidas: Cordialidade e respeito.

MÚSICA: CINEMA PARADISO, First Youth – Ennio Morricone



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