EU e EU

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Eu estava no Rio de Janeiro, saíra do escritório de um cliente e juntamente com outras pessoas aguardava o elevador; acendeu a luz indicativa e a porta abriu. Ninguém desceu e, como estava lotado, ninguém entrou.

Notei lá dentro um sujeito, com um rosto familiar, cumprimentei-o com um sorriso, mesmo sem identificar quem era e ele retribuiu. Tinha perto dele uma menina que apontou para mim, com olhar impressionado de quem vira algo muito interessante.

A cena foi rápida, que nem percebi se o elevador subiu ou desceu.

Mas senti algo muito estranho naquilo tudo, e, só então, como se tivesse acordado com água jogada no meu rosto, é que me dei conta, que a pessoa que estava no elevador era eu mesmo!

Tentei coordenar as idéias, pois aquilo não era possível. Não era alguém parecido comigo, não era isso. Era alguém idêntico a mim, era eu mesmo em dois lugares simultaneamente. A expressão de espanto daquela menina era reveladora, de que tinha percebido a insólita situação.

Não lembro o tempo que durou esse atordoamento que se apoderou de mim, mas tão logo entendi o que se passara, tentei descer no próximo elevador e localizá-lo na portaria do prédio, mas não tive sucesso.
Esse dia mudou minha vida.

Na viagem de volta para Porto Alegre, decidi não contar para ninguém, pois tinha certeza que não levariam a sério e seria tomado por louco.

Sem revelar o ocorrido, fiz algumas perguntas aos meus irmãos sobre o passado do nosso pai, mas não obtive qualquer informação relevante. O sujeito que eu vira, não era parecido com meus irmãos, ele era igual a mim, como se fosse um irmão gêmeo.

Até no hospital e no cartório do registro do civil andei pesquisando, mas não havia nada, não nasceu um irmão junto comigo. Não havia o gêmeo.

Perdi um bom tempo na internet; mas as pesquisas remetiam para espiritismo e teorias pseudocientíficas de pouca credibilidade.

Desde então passei a sonhar com ele com muita freqüência, meu psiquiatra explicava os sonhos, mas tropeçava na realidade.

Ficava imaginando o que aquele outro eu fazia. Como seria sua vida? Quem seriam seus amigos? Sua família? Seus gostos? Como ele teria reagido a aquele nosso encontro casual? Teria me identificado? Estaria também me procurando?

Então fui me dando conta que a vida dele para mim, ou a minha para ele não teria maior relação, já que, embora fôssemos a mesma pessoa, teríamos vivido vidas totalmente separadas. Era uma situação incrível.

A questão é que não se tratava de outra pessoa, era eu mesmo, por mais improvável e inacreditável que possa parecer. Não seria outro, mas eu vivendo duas vidas, uma em Porto Alegre e outra no Rio de Janeiro da qual eu não participara.

Decidi terminar com o segredo e contar para os amigos e a família; e aconteceu o que eu já previra, poucos levaram a sério e ninguém conseguia entender e, muito menos, explicar.

A partir da revelação do fato, sempre havia quem perguntasse se já tinha encontrado o meu outro eu. Isso passou a fazer parte da minha vida.

Passado algum tempo, acatei a sugestão de um amigo e voltei ao Rio, para tentar descobrir alguma coisa, que ajudasse a entender o ocorrido. Aproveitei uma semana de férias e fui até o mesmo edifício onde aconteceu o encontro.

Era um prédio moderno em Botafogo, que tinha um administrador do condomínio bastante atencioso. Contei o que acontecera, ele olhou bem para mim, disse que nunca tinha visto alguém parecido comigo por lá.

Ele insistiu em saber a data do ocorrido, pois era bastante organizado e tinha um livro de controle, onde eram registrados os fatos relevantes que aconteciam no prédio.

Foi olhando o tal livro de ocorrências e, ao chegar na data, seu rosto se iluminou.

“Veja aqui, nesse dia tive um problema com o pessoal que estava reformando um conjunto no 18º andar. Eles transportaram um painel de espelho da decoração pelo elevador social. Não há como esquecer, o proprietário até recebeu uma advertência do síndico”.

Fez uma pausa e completou:

“Tá explicado! provavelmente o senhor esperava o elevador, a porta abriu e, então se viu no espelho lá dentro, foi isso que aconteceu”.

Ainda atordoado com a explicação, questionei sobre menina, que tinha reagido com surpresa quando me viu. Então ele disse:

“Ela talvez estivesse ao seu lado esperando o elevador, pois lá no 11º, onde vocês estavam, tem uma dentista que atende crianças. Ela não deve ter apontado para o senhor, mas para ela mesma, quando se viu no espelho”...

Foi um impacto enorme. De um momento para outro, todas as indagações filosóficas, as dúvidas ontológicas, as elucubrações sobre o outro eu, ficaram reduzidas a um mero equívoco, decorrente de um espelho transportado de forma irregular... Era muito pouco. Sentia um misto de frustração e vergonha.

A explicação racional não atendia minha expectativa, queria algo que me remetesse para aquela improvável dupla personalidade ou dupla existência. Passada a perplexidade, saí dos meus devaneios, agradeci a atenção do administrador do prédio, fui embora e nunca mais voltei lá.

Resolvi ficar o restante da semana no Rio, já que estava de férias e não queria voltar logo; precisava assimilar melhor tudo o que tinha acontecido.

Quando voltei, disse aos que me perguntaram que não encontrara pista nenhuma. Nunca contei para ninguém o que houve realmente. A explicação tão prosaica, do que efetivamente tinha acontecido, deixava-me em situação constrangedora e meu mistério pessoal iria pelo ralo...

Permaneci sustentando a existência do outro eu e, mantendo a mística sobre essa situação inexplicável, que era o enigma da minha vida.

Sempre trato do assunto com seriedade e poucos são os que fazem ironia com isso. Em geral o tema é visto como um mistério, que me envolve, e desperta a curiosidade de todos; confesso que me dá até uma certa notoriedade...

Uma vez fiquei sabendo, que uma pessoa que eu nem conhecia, me viu num restaurante e comentou com um amigo:

“Tá vendo aquele sujeito lá, pois é, ele desenvolveu o dom da ubiqüidade”.

Música: REFLECTIONS OF MY LIFE - The Marmelade



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