O HOMEM QUE MATOU O DRAGÃO

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Tantas são as mudanças, tantos são os inventos recentes que alteraram nossa vida, que fica difícil escolher qual o mais importante.

Um amigo médico, que costumava chegar tarde em casa e esquentava o jantar no banho-maria, considera o forno de microondas a mais importante inovação. Para outros é o computador, a internet, o celular, o cartão de crédito e por aí vai.

É claro que a experiência pessoal acaba influindo na escolha de cada um, tenho um amigo que sustenta que a película de insulfilm, colocada nos vidros dos automóveis, é a mais revolucionária invenção da humanidade.

O caso dele tem explicação.

Há alguns anos os hábitos eram outros e os motéis ficavam quase todos na zona sul. Era de um deles, com o dia já clareando, que o Valdir, hoje mais conhecido como São Jorge, voltava dirigindo seu Opala. Trazia a companhia que ele achara tão interessante à noite e que a luz da manhã evidenciava seu engano, e o equívoco tinha sido enorme.

O banco da frente do carro era inteiro, ela vinha bem juntinho dele com o braço por cima, como era comum naquele tempo. Não era propriamente ternura, mas a preocupação em garantir que seria deixada realmente em casa e não empurrada para fora do carro.

Ele não queria ser grosseiro, mas estava visivelmente desconfortável com aquele cadáver no seu pescoço, parecendo mais uma caricatura da famosa propaganda da Emulsão Scott, só que com o bacalhau escorregando para o lado.

Nunca o bairro da Cavalhada pareceu tão longe do Centro.

Então aconteceu o que hoje se convencionou chamar de Lei de Murphy.

Parou numa sinaleira e ao lado encostou uma camioneta Caravan lotada; olhou com o canto do olho e reconheceu seu primo. Estavam todos, a tia, a prima, os filhos; iam para a praia e olhavam explodindo de curiosidade, vendo aquele dragão agarrado nele.

Tentou disfarçar e fingir não ver, mas era quase impossível ignorar a buzina do primo e alvoroço dos parentes. Fez um gesto contido com a mão, que é aquilo que algumas senhoras chamam de um “adeusinho”. Nem esperou abrir o sinal e arrancou cantando os pneus.

Os costumes mudaram, os motéis se espalharam pela cidade, mas ele suspira dizendo

que, se naquele tempo já tivessem inventado a película de insulfilm, sua vida teria sido

outra; pois não teria de agüentar as piadas dos parentes nos aniversários da família,

quando o chamam de “o homem que matou o dragão” e teria se livrado do maldito apelido

de São Jorge, que lhe deram, desde então, e carrega até hoje como algo entranhado na sua própria pele.






Música: JORGE DA CAPADÓCIA– Jorge Ben



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