LIBERDADE É UMA CALÇA VELHA, AZUL E DESBOTADA

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Antes de tudo o "Julinho" era um extraordinário laboratório social.

Na minha turma da 1ª série do ginásio havia até aluno arrecadador do jogo do bicho. Alunos ricos, classe média, pobres, muito pobres, brancos, pretos, mulatos, todos freqüentavam a mesma escola.

Vivíamos intensamente a política estudantil. Fiz greve, por motivos que nem lembro mais. Fui presidente de aula, secretário do Grêmio Estudantil e meus ídolos eram o Che Guevara e os Beatles.

No turno da manhã estudavam os alunos da 1ª e 2ª série ginasial e as alunas do clássico e científico. O grande programa era subir as escadas perto do corrimão, olhando para o alto, para ver as pernas das gurias. Elas sabiam disso e evitavam andar na beira da escadaria. Mas, com sorte, sempre havia uma desatenta para nossa alegria.

Quando estudávamos à tarde, a onda era se corresponder por bilhetinhos, colocados embaixo das classes, com as alunas que ocupavam a mesma sala no turno da manhã. Cada um tinha a "sua".

Ao chegar à sala íamos logo procurar a correspondência recebida. Era uma grande curtição. Não chegava a ser um namoro. Elas, em geral, eram bem mais velhas do que nós. Ah, como era bom desdobrar aqueles bilhetinhos, com letra feminina bem caprichada e frases românticas. Sempre havia uma perspectiva de conquista. O curioso é que não conhecíamos as nossas correspondentes. Sabíamos apenas os seus nomes e como eram suas caligrafias.

O sucesso da nossa correspondência gerava ciúmes em alguns colegas mal amados. Teve um que começou a bisbilhotar os nossos bilhetes. Como ele chegava mais cedo, mexia nas classes, lia as nossas correspondências e até tentou colocar um bilhete seu, de contrabando, para uma de “nossas” gurias.

Nós não podíamos provar. Ele negava qualquer intromissão, mas tínhamos certeza. Era um daqueles tipos caladões, que no recreio não saía da aula. Sua xeretice estava nos aborrecendo bastante.

Foi aí que bolamos a vingança.

Naquela época não se fabricavam no Brasil calças do tipo blue-jeans. Só havia Far-West ou brim-coringa, que não desbotavam.

O sucesso eram as calças trazidas dos Estados Unidos. Quem tivesse uma calça Lee, de preferência bem desbotada, estava realizado. O ideal da juventude, naquele tempo, era conseguir uma calça americana legítima.

Para obter esta peça fundamental da indumentária e também da afirmação do adolescente, tudo era válido.

Assim, durante um recreio do turno da tarde, espalhamos que na sala 207 tinha um sujeito que era sobrinho de um piloto da Varig, que conseguia calças Lee.

Claro que o indigitado era o bisbilhoteiro. Enriquecemos a dica, com o comentário que ele costumava negar, que tinha o ambicionado troféu juvenil, pois seu tio tinha receio que fosse descoberto o seu comércio ilegal.

Não foi preciso mais que uma tarde, para que um enxame de alunos chegasse na minha sala de aula e começasse a infernizar a vida do xereta.

Lembro perfeitamente das frases:

-"Eu sei que tu não queres abrir o jogo, mas tô sabendo."

-"Qual é cara? Tu achas que eu vou entregar o teu tio?"

E assim por diante... Em pouco tempo a romaria na minha sala tornou-se insuportável. O sujeito começou a ficar louco. Tornou-se de uma hora para num dos alunos mais famosos do Julinho.

Após uma semana, ele não agüentava mais. Soube que fomos nós que inventamos aquela história toda. Veio falar conosco e confessou sua bisbilhotice, anteriormente negada, implorando para que o livrássemos da injustificada fama de vendedor.

O tempo se encarregou de arrefecer o entusiasmo em torno do "falso contrabandista", já que ele nem usava calça Lee...

A adolescência de tantos jovens como eu foi vivida no Julinho. Queríamos reformar o mundo, ao mesmo tempo em que procurávamos afirmação pessoal. O colégio era o ambiente onde se processava toda essa maravilhosa agitação juvenil.

Lembro que até fui capaz de assistir um festival nouvelle vague no Cine Rex, aturando três filmes inteiros do Godard, só por causa de uma baixinha de tranças...

Entre a contestação, a ânsia de afirmação e as conquistas femininas dividia-se a nossa vida. A indumentária perfeita para aquele estado de espírito evidentemente era o blue jeans. A palavra de ordem era sempre: Liberdade.

Houve um comercial, que surgiu tempos depois, da marca US Top, que captou isto com perfeição, numa frase:

Liberdade é uma calça azul, velha e desbotada.

Passaram-se os anos e tive oportunidade de visitar Cuba e a Hungria antes da queda do Muro de Berlim. Lá verifiquei que os jovens dos países comunistas, criados longe e até exorcizando o consumismo, também dariam a vida para conseguir um jeans.

É fácil constatar que, seja nas ruas de Havana ou Budapeste, ou no interior do Julinho, não importa a época, nem o regime político, quando se é jovem, há o desejo de ser diferente. Mas todos são muito parecidos uns com os outros...

Agora, lembrando aquela época, escrevendo na minha casa, num sábado chuvoso, ouvindo a algazarra dos meus filhos na sala, noto que estou vestindo um jeans desbotado e fico sorrindo sozinho. Saboreando as lembranças de um tempo em que fui jovem, fui aluno do Julinho e fui feliz.

Texto publicado no livro “Memórias do Julinho” – 1990 – Ed. Sagra

MÚSICA: CORAÇÃO DE ESTUDANTE Milton Nascimento



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