NÃO MAIS QUE DOIS

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Ele já sabia os horários e esperava ela sair, ouvindo a porta abrir e depois bater. De longe espiava o vulto, ainda no corredor, contra a luz da entrada do prédio. A malha rosa, o cabelo preso num coque envolto numa rede da mesma cor e na mão a sacolinha com as sapatilhas.

Minutos depois ele saía e ia até a escola de ballet, que era no primeiro andar de um prédio onde havia uma farmácia no térreo. Ficava por ali na calçada, olhando uma revista para disfarçar, mas queria mesmo era escutar o som que vinha lá de cima. O martelar de um piano ritmado marcado pela voz da professora, que repetia o que deviam ser os movimentos e os exercícios, que sua imaginação projetava como um quadro de Degas.

Do fascínio pela vizinha bailarina, veio o gosto pela música e dança, que tinha receio de externar, diante da previsível reação dos outros meninos, que hoje se conhece pelo nome de bullying. Jogava mal futebol e as vezes era colocado como goleiro, para completar o time, mas sua atuação acabava gerando crítica e reclamações, isso fazia com que evitasse jogos com bola e não participasse das brincadeiras.

Quando a família dela mudou-se do prédio, deixou na casa dele, que era filho do zelador, uma caixa de objetos inservíveis para ver se queriam aproveitar, antes de ser jogados fora. Remexendo ali encontrou uma preciosidade, uma antiga sapatilha de tamanho pequeno, que não servia mais. Apanhou sem que seus pais vissem e guardou em segredo, como um troféu ou fetiche.

Assim, sem que ninguém soubesse, foi mantendo o gosto pela dança, que mais tarde evoluiu para aulas e quando já era adolescente até participou de algumas apresentações de produção de poucos recursos e público escasso.

Como precisava ganhar a vida, fez curso e concurso para auxiliar de enfermagem, indo trabalhar num grande hospital. Pois foi lá, na rotina do trabalho, examinando o prontuário dos pacientes do andar, que leu um nome e teve um susto. Era ela, baixada no quarto 226 em recuperação pós-cirúrgica.

Refeito da surpresa, tomou fôlego e foi até lá. Encontrou-a dormindo, vestindo uma camisola azul, pálida, sem maquiagem com os cabelos soltos e desalinhados. Sua fisionomia era tranquila e lhe trazia de volta a menina do seu prédio da infância.

Esperou que despertasse, apresentou-se como enfermeiro e disse quem era, lembrando o passado. Tomado de entusiasmo foi relatando de forma serena toda a sua paixão infantil, o gosto pela dança e a alegria de reencontrá-la.

Quando foi tomar-lhe o pulso e retirava o medidor de pressão, ela segurou a mão dele e quis ficar assim por alguns instantes, olhando em seus olhos como se estivesse agradecendo por aqueles momentos, que lhe faziam tão bem e lhe proporcionavam alegria.

A família dela estava restrita a uma filha, que morava em São Paulo e tinha vindo apenas para acompanhar a cirurgia e não poderia ficar mais tempo aguardando a alta hospitalar. Assim, ela ficou alguns dias sozinha no quarto, tempo que foi preenchido pelas visitas dele, que lhe trouxe Cisne Negro, Les Uns et les Autres e Billy Elliot em DVD, filmes da sua coleção, para que ela assistisse no notebook.  Sempre que podia, ele ia ao quarto para ver partes dos filmes junto dela.

Durante este período lembraram a infância, falaram de ballet e a recuperação passou breve, até que foi autorizada pelo médico a deixar o hospital.

O contato ali retomado prosseguiu e ele ia visitá-la no seu apartamento durante o reestabelecimento pós-hospitalar. Até que um dia ele fez uma surpresa, levando-lhe envoltas em papel de seda, aquelas sapatilhas que guardara por tanto tempo...

A relação evoluiu e se fortaleceu, ele solteiro, ela sozinha, passaram a viver juntos; sem filhos, sem cães, nem gatos, pas de deux.

Música: BOLERO - Maurice Ravel



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