o legado

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O médico diagnosticara uma daquelas doenças de nome complicado, que anunciava um limite de tempo de vida. Aquilo o impactou fortemente e provocou abatimento. Ninguém está preparado para tratar da própria morte. Refletiu diante da situação que se avizinhava: Vou partir e que irei deixar? Como serei lembrado? Qual meu legado?

Não casou nem teve descendentes, não compôs, não pintou, não escreveu e nunca teve destaque profissional. Gostava de futebol, dos amigos e de mulheres, ah! nesse item foi um campeão, teve muitas aventuras. Solteiro e sem compromisso nunca lhe faltou companhia feminina, que vivia trocando. Quando houve aquela grande repercussão pelo milésimo gol do Pelé, ele resolveu fazer suas contas e proclamou aos amigos que já tivera um número bem maior de mulheres. Intimamente chegou a pensar no Maracanã lotado para comemorar uma cifra retumbante, mas ficou só no devaneio.

Carioca e botafoguense usava muito aquelas expressões dos cronistas esportivos, foi assim quando encerrou seu ciclo de aventuras e declarou que, estava “pendurando as chuteiras” para viver com a Liz, assumindo uma relação monogâmica. Ela trabalhava com arte, tinha situação financeira tranquila e encantos ocultos que o seduziram, sendo como a Yoko desse nosso Lennon dos lençóis.

A perspectiva do fim da vida voltou a ocupar sua mente. Foi a primeira vez que pensou na palavra posteridade, na dúvida sobre o que deixaria para os pósteros. Seu pensamento foi interrompido pelo enteado, ao lhe mostrar uma impressora em 3D, que recém adquirira para sua atividade profissional. Curioso por novidades tecnológicas crivou o rapaz com perguntas e ficou encantando com o equipamento, que transformava grãozinhos de resina em objetos e formas.

No dia seguinte acordou entusiasmado, saindo do desânimo anterior e revelou sua ideia mirabolante. Olhou para a Liz e disse: “Encontrei a solução. Vou deixar um legado para a eternidade. Afinal, tu sabes, eu sou o cara que transou com milhares de mulheres” – colocou a mão entre as pernas e prosseguiu – “ele aqui é que teve esse desempenho e merece ser lembrado para sempre, vou usar a impressora 3D do Bira”.

Ela andava bastante preocupada com seu abatimento, e por isso, superou o mal-estar da vulgaridade do gesto e de tratar de “ele” o próprio membro, e, decidiu estimulá-lo com o plano que lhe afastava da depressão. Leram com atenção o manual da impressora e, depois de várias tentativas, conseguiram criar a matriz virtual do projeto pouco virtuoso, já em condições de transpor para a máquina. A tecnologia funcionou e o equipamento construiu a réplica do seu pênis em resina. Como os polímeros eram brancos, ficou parecido com aqueles ex-votos que se usam para pagamento de promessa religiosa. Tentou mitigar colocando Bombril na base, para parecer mais real, mas a milésima segunda utilidade da palha de aço não ficou bem.

Era preciso mudar a cor. Lembrou-se da pasta de dente que sai rajada do tubo e quis fazer em preto e branco igual à camiseta do seu time. Não deu certo e o resultado foi um objeto cinza, porém já bem melhor que o branco.

A partir deste momento a Liz teve papel fundamental, decidiu transformar aquilo num evento artístico. Tentou alugar a sede do Botafogo que tem o apelido de “glorioso” e proporcionaria um ótimo duplo sentido ao personagem da exposição, mas o plano gorou diante da recusa do clube.

Para obter o beneplácito das autoridades de saúde, colocou um preservativo nele e, com isso, negociou o patrocínio com o fabricante da camisinha. Então conseguiu um amplo salão de exposição, retirou bancos e demais peças do local, deixou apenas um pedestal isolado no centro, em que colocou o objeto dentro de uma redoma, iluminado por um facho fechado e intenso de luz, que parecia o fazer flutuar naquele ambiente. O título da obra de arte era: O legado.

A repercussão foi enorme, os aplausos da crítica resultaram na sua inscrição para representar o país na Bienal de Veneza, a acolhida no meio artístico internacional foi ainda maior. Ganhou uma sala exclusiva na qual o despojamento do ambiente, somado à iluminação intensa sobre a peça exposta, mereceu uma reportagem de página inteira no jornal com o título de “a estrela solitária” em mais uma referência ao seu time do coração. Já com a saúde comprometida ainda conseguiu viajar até a Europa para participar dos acontecimentos.

Tornou-se celebridade e a imprensa mundial queria saber de suas mais de mil parceiras. Um jornalista lhe perguntou sobre Sigmund Freud, por razões óbvias, mas ele entendeu “frau”, lembrando-se de uma alemãzinha, esposa do dono de uma pensão onde morara. Nem esperou a tradução da intérprete e lascou a resposta, que até hoje rende polêmica no meio intelectual: “Essa eu não comi”.

Dias depois, antes do final do evento, teve uma parada respiratória e veio a falecer por lá mesmo, imitando o título do romance de Mann, mas deixando o seu legado.

Música: QUE C’EST TRISTE VENICE- Charles Aznavour



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