O ÚLTIMO TANGO (Passado, futuro ou presente?)

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Mulher de algum passado e pouco futuro é uma frase cruel e injusta. Marlene era manicure, se esmerava na maquiagem e no cabelo e saía para fumar na porta do salão. Havia um ligeiro conflito entre o corpo e tamanho da roupa, que somado ao visual produzido, tornavam sua presença bastante chamativa. As baganas de cigarro com batom eram como um relógio, a marcar o tempo aguardando alguém, que poderia ser apenas uma esperança indefinida.

Eis que surgiu o Onor, com “h” de Honorino para alguns, ou mesmo Claudionor, sem “h” nem vergonha. Mas isso pouco importa, diante da sua figura ímpar. Os olhos claros num rosto marcado e emoldurado por uma cabeleira grisalha compunham o seu estilo de conquistador no passado.  A unha comprida no dedo mínimo era prova inequívoca que nunca andara perto de trabalho pesado, com suspeitas que o leve também passara longe...

Apesar da visão fraca não usava óculos, isso fez com que visse a Marlene sem nitidez, mas com os contornos de sua imaginação, tal qual D. Quixote viu sua Dulcinéia; o tempo cria em nossa visão uma espécie de photoshop, para ver os outros sem os efeitos da idade, mas com a lente generosa de nossas lembranças.

A má fé e a esperança se encontraram de modo natural, naquele casal quase perfeito, de pretérito imperfeito. Assim, do passado ao presente, ele foi usando o pouco dinheiro dela, que não se importava, pois mesmo com aquela unha, ela gostava dele e dizia que seu nome até rimava com amor.

No seu pedestal na soleira do salão, fumava esperando ser buscada por aquela figura, que lhe devastava o bolso e o coração, não necessariamente nesta ordem. Viviam uma paixão tardia, compartilhando felicidade em noitadas inesquecíveis marcadas pelo tango dançado com estilo e arrebatamento.

Tudo ia bem, até que um dia disseram que ele iria partir em “missão oficial”, pois alguns oficiais de justiça, que conheciam seu passado imperfeito, estavam no seu encalço.

A cena da partida foi memorável. Apareceu pela manhã no bar do Bigode com uma eletrola portátil e nela colocou um disco. Pediu taça, pão e manteiga. Depois começou a beber conhaque, repetindo a música toda vez que terminava. Com os olhos cheios de lágrimas, disse que aquele era o tango deles. Pediu o último copo, ergueu, disse: “Marlene” e bebeu de um gole só. Levantou-se sem pagar a conta, foi até a calçada, pegou um táxi e desapareceu para sempre. No balcão do bar ficou a eletrola tocando “Mano a Mano”, ao lado da taça, do copo e restos de pão e manteiga, como a imagem final daquele último tango em Porto Alegre...

Marlene chorou muito, as amigas tentaram lhe consolar, falando dos maus antecedentes e escassas perspectivas; mas ela foi superior e disse: “Não me importa o passado e tampouco o futuro, o tempo que vivi com ele foi um verdadeiro presente”.

Música: MANO A MANO – Francisco Lomuto



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