ONDE FOI PARAR A CULPA

Para ouvir o som clique no botão ao lado.

Solteirão é uma palavra que já não se usa mais. Mesmo assim é como se considerava. Vivia com a mãe. Ela sempre dizendo que não queria incomodar, nem atrapalhar a vida do filho, mas não fazia outra coisa além disso. A figura caricatural da mãe judia, no caso dele, era quase uma patologia. A forte personalidade materna deixava a dele fraca.

Seus negócios iam bem, tinha apartamento próprio, comprara outro na praia, seu carro era novo e não tinha dívidas. Saia na noite para jantar, beber e também procurar mulheres. Tinha alguns amigos casados, outros separados, mas ele se sentia o solteirão.

Tinha interesse por uma mulher, que lhe atraía, mas era funcionária da sua empresa. Era uma morena esguia e discreta, chamada Nilza. Separada, tinha uma filha já adolescente. Nunca chegou a dizer nada a ela, mas sentia que sabia do seu desejo. Era aquele silêncio cúmplice, como se houvesse um pacto.

A razão da imobilidade e do mistério era, outra vez, a mãe. Mesmo sem saber de nada, deixava no ar a ameaça geral, para que o filho não se envolvesse com as empregadas, dizia em ídiche o que dava uma conotação pejorativa. Ele não tinha coragem de enfrentá-la.

Passou o tempo e a mãe morreu. Tão asfixiante tinha sido sua presença, que estranhamente passou a sofrer de asfixia similar, mas agora pela sua ausência. Foi-se a mãe, ficara a culpa. Mas afinal, que culpa era aquela, já que nada fizera de errado? Não sabia responder. Faltava algo e queria mudar.

Foi quando tomou coragem e fez o que tanto adiara. Declarou-se para a mulher que desejava, e ela confessou que sempre aguardara aquele momento. Disse que também gostava dele, mas não aceitaria uma aventura, aceitava namorar e viverem juntos, mas depois disso não poderiam conviver como patrão e empregada, era um caminho sem volta.

Ele dividiu com os amigos a decisão, que também tinha o significado de uma possível libertação do fantasma da mãe.

Nilza preparou-se com esmero para o primeiro encontro, tão longamente adiado, foi ao cabeleireiro e esteticista, como se fosse uma noiva.

Os amigos comentavam que agora, sem a mãe, teria uma nova vida. A funcionária ou ex-funcionária poderia lhe ajudar a se ver livre das culpas, que sempre o atormentaram.

Passados alguns dias, para surpresa geral, a Nilza foi embora. A união entre eles nem chegou a se estabelecer.

Os amigos preocupados, vendo que ele voltara a ficar abatido e infeliz, o procuraram para saber o que houvera.

Com alguma resistência disse que não deu e não daria certo. E, sem explicar direito, falou:

“Foi a mãe”.

A perplexidade no rosto dos amigos pedia uma explicação melhor. Ele e a Nilza nunca tinham ficado juntos. Ela se prepara para aquele momento. A mãe já tinha falecido. Não estavam entendendo.

Então ele suspirou e continuou:

“Vocês sabem que hoje as mulheres se depilam deixando só um pouquinho de pelos; ela fez o mesmo e ficou só um pequeno retângulo, que era para ser excitante.

No início até gostei, mas mais tarde quando acendi a luz e olhei melhor, tive um susto, pois achei que parecia aquele bigodinho do Hitler...logo ele!

Pois é, aí veio a lembrança da mãe e... foi como se ela tivesse ressuscitado, deitado ali na cama junto de nós e não saiu mais do meu lado.

Acho que preciso procurar um psiquiatra”.

Música: MOTHER – John Lennon



Compartilhar:


IR AO ÍNDICE