OS TEMPOS ERAM OUTROS

Para ouvir o som clique no botão ao lado.

Ele ficava na calçada olhando para a sacada da casa dela. Os tempos eram outros. Ela afastava suavemente a cortina da porta e olhava para a rua. Ele sentia que ela iria aparecer e ficava ansioso. Os tempos eram outros. Passavam-se alguns minutos e ela saía. Simulava procurar alguma coisa, lançava um olhar rápido para a rua, apenas para certificar-se que ele estava lá. Ajeitava o cabelo, jogando-o para trás e retornava para dentro. A cena durava pouco. A sacada permanecia deserta e ele seguia olhando para lá. Os tempos eram outros.

Sucediam-se os dias, o roteiro poderia mudar em alguns detalhes, mas era como uma repetição. Se fossem contados os períodos, daquela contemplação da sacada esperando pela aparição dela, seriam muitos minutos, algumas longas horas. Porém, os tempos eram outros.

Nem Romeu, nem Julieta. Nem o balcão de Verona. Nem Capuleto, nem Montecchio. Apenas aquele desejo ardente de vê-la, sem que ela permitisse algo mais que aquela contemplação. Na rua ele não conseguia abordá-la, fosse pela companhia da mãe, fosse pela presença de terceiros, fosse principalmente porque ela não deixava. Talvez tivesse medo. Do que? Hoje não é fácil entender, pois os tempos eram outros.

Famílias diferentes. Idades diferentes. Interesses um pouco diferentes. Para ele a conquista, o desejo, quase um misto de sonho e realidade. Para ela o mistério, a incerteza, o gozo secreto de manter intensa aquela obsessão dele, que o contato poderia desfazer ou diminuir. Além disso, a explícita restrição familiar tinha um peso decisivo. Os tempos eram outros.

Tomado de coragem bateu na porta da casa. Foi rechaçado pela família. Tentou contato na rua, mas ela não quis conversar. Apenas disse não e seguiu caminhando. Ele insistiu, ela baixou a cabeça e apressou o passo. Ele ficou parado, enquanto ela se afastava. Teve a impressão que, já mais longe, virou-se e sorriu. Talvez fosse apenas sua vontade, mas incendiou seu coração.

Então ela foi embora. A casa foi vendida, pois ali seria construído um edifício. Várias vezes ele voltou lá, onde não morava mais ninguém, olhando para o mesmo local, sonhando ver seu corpo entre a balaustrada.  Quando começaram a demolição, falou com os operários para que não quebrassem aquelas colunas da sacada, pois queria levar de lembrança por razões sentimentais. Deu uma gorjeta a eles e levou um daqueles pilares consigo. 

Alguns anos depois, mandou fazer um abajur usando aquele pedaço da sacada como base. Assim, passado tanto tempo, cada vez que liga a lâmpada, acende também a antiga paixão e volta a lembrança dela.  Pensa no que não aconteceu e no que poderia ter sido. Que pena. Os tempos eram outros.

Música – WHEN A MAN LOVES A WOMAN – Michael Bolton



Compartilhar:


IR AO ÍNDICE