PRÍNCIPE SENEGALÊS

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O Paulinho frequentava o bar perto da minha casa. Era um negro alto e magro, já com alguns brancos da carapinha rala, sempre de terno e camisa branca, com um cigarro na boca, os olhos rútilos e muito cortês.

Um conjunto musical improvisado tocava para um cantor ocasional, mas ele ficava à distância, apreciando sem participar. Não me lembro de tê-lo visto sóbrio. Tratava bem as crianças que, como eu, iam comprar balas ou chocolate. Igualmente fazia mesuras para a passagem das senhoras que adquiriam gêneros a granel, tirados das tulhas, pesados na balança e embrulhados com malabarismo pelo dono do armazém, que girava o papel torcendo as pontas, colocando depois no balcão. Havia um vidro grande, com ovos cozidos boiando num líquido indefinido, que despertava um misto de curiosidade e repugnância. Na porta o Paulinho abria passagem para a clientela e se despedia quando saíam. Nós assistíamos aquelas cenas, então banais, sem compreender que estávamos diante do fascínio da simplicidade.

Todos gostavam dele, não fazia mal a ninguém, esmerava-se na gentileza com os clientes e tinha uma conversa quase incompreensível fosse pela bebida ou pela dicção embolada. Seu equilíbrio ficava no limite entre a queda e o contorcionismo.

Uma ocasião meu pai foi lá me buscar, pois não voltava para casa. Ralhou comigo, mas com a doçura que lhe era inerente, logo mudou de assunto. Comentou sobre o Paulinho, dizendo que pela sua elegância natural parecia um príncipe senegalês. É óbvio que nunca esqueci.

Meu sobrinho, que trabalha no IFC, vai passar oito meses no Senegal. Então a memória buscou todas essas lembranças de um tempo em que não havia violência, dizer que alguém era negro não significava injúria racial e a cordialidade era absolutamente natural. Quem diria que, passados mais de sessenta anos, estaria curtindo a inocência do Paulinho com seus salamaleques, que tem origem em “salaam aleiukum” talvez justificando o comentário do meu pai, que não conheceu o neto que agora vai para a África. Ah! tanta coisa mudou.

Hoje posso gostar de sapato italiano e cashmere e usá-los com prazer; mas são coisas que o dinheiro compra. Porém, esse caleidoscópio de sons, cores, cheiros e lembranças da minha infância, não se obtêm no comércio. Essa extraordinária riqueza tem nome, chama-se: simplicidade. Ela impregna o caráter, é um privilégio de poucos, entre eles os que puderam curtir ter convivido com um príncipe senegalês.

Música – GENTE HUMILDE –Joel Adriano



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