UM CORAÇÃO E DUAS COXAS

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Os filhos discutiam quem ficaria com mais coraçõezinhos de galinha. Ele assistia sorrindo. Como não havia consenso e a discussão recrudesceu, achou que deveria intervir e o fez de forma despretensiosa, não imaginando a repercussão de suas palavras. Disse apenas, que na sua infância não se brigava à mesa, e que quando a mãe dele matava uma galinha havia apenas um coração e duas coxinhas.

Sua frase causou impacto. Parecia que estava revelando mistérios anatômicos de animais pré-históricos, tão anacrônicos como o hífen e o hímen, ambos em franco desprestígio. Tinha alcançado seu objetivo, que era encerrar aquela querela entre os filhos, mas percebera que sua manifestação havia surpreendido a todos.

Então passou a contar como era “no seu tempo”, quando a ave era vendida viva, pesada, enrolada num jornal [antes da primazia dos tabloides, era o velho Correio do (p)Ovo] e ficava com a cabeça de fora olhando assustada, insciente de seu destino inexorável. Em casa a mãe matava a galinha, torcendo seu pescoço.

A revelação causou estupefação. A avó, aquela bondosa velhinha, revelava-se agora uma criatura perversa, que mereceria ter sido denunciada para o Greenpeace ou fundamentalistas similares. Os netos estavam chocados (não no sentido avícola) e pareciam duvidar do relato paterno. Ora, coração se compra em bandejas no supermercado ou então por quilo, o mesmo acontecendo com as coxinhas. A drástica redução de um só coração e duas coxas era uma situação impensada e quase incompreensível para a geração atual.

A questão banal, que surgiu no almoço, remetera para reflexões de alta indagação. Quando havia pouco, os irmãos não brigavam, a escassez gerava mais altruísmo, enquanto a abundância atual estava fomentando o egoísmo. Então aproveitou para uma brilhatura filosófica e disse: “não importa o número de corações, mas a generosidade que habita no nosso”.

Sucediam-se as indagações, parecia um cacarejar, todos queriam falar ao mesmo tempo, surpresos que não havia o tradicional espeto de coração de galinha nos churrascos de outrora.

Saboreando o sucesso da revelação feita aos filhos, sorria e divertia-se intimamente. Como tinha espírito irônico, decidiu aguçar a curiosidade e apimentar a imaginação, e, ao sair da mesa, finalizou dizendo:

“Interessante, não é mesmo? Pois é, isso que nem comentei com vocês sobre os testículos do galo”...

Música – THE WAY WE WERE – Barbra Streisand



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