UMA DECISÃO INTELIGENTE

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O título pode ser atraente, mas não é muito adequado, já que a decisão foi minha e, portanto, não fica bem chamá-la de inteligente. Apenas aproveitei no título o slogan de um conhecido comercial, ao justificar a decisão de encerrar minha coleção de carteiras de cigarro.

Comecei há mais de 40 anos e, agora, resolvi parar, ao ver as carteiras com anúncios de advertências, contendo fotos, mostrando efeitos de doenças e imagens chocantes. Pode ser uma opção válida como política de saúde pública, mas não acho graça juntar carteiras com estas imagens deprimentes. Para mim chega, fico com as quase 3.500 marcas que tenho.

Ao longo dos últimos anos, o cigarro perdeu muito do seu charme e hoje está sitiado entre o câncer, o contrabando e a fraude fiscal. Assim fica difícil. As indústrias legais sofrem com a concorrência da ilegalidade e os cigarros populares, cada vez mais, têm o sotaque do portunhol, que simula ser paraguaio. As carteiras estão mais feias e os nomes pouco criativos.

Não se trata de uma decisão com ressentimento, tanto que vou conservar a coleção reunida até hoje. Tenho em casa e no escritório quadros e painéis de carteiras de cigarros e não pretendo me desfazer deles, nem das carteiras em papel colocadas em pastas em ordem alfabética.

Não fumo e nunca fumei, nem comprei carteiras de cigarro, cheias ou vazias, exceto uma meia dúzia em feiras de antigüidades em viagens. A coleção foi sendo formada por presentes de amigos e outras que, desde pequeno, fui juntando e trocando. Cada uma das carteiras tem sua história.

Com o advento da internet colecionar carteiras de cigarro virou um negócio. Os colecionadores tem critérios diferentes para as classificações, há os que consideram mínimas mudanças numa embalagem como sendo um exemplar diferente, outras, como a minha coleção, só consideram diferenças notórias. Por isso, no ranking da quantidade minha coleção não está em destaque. Também no ranking da qualidade talvez não venha a obter lugar de maior relevo, já que não faço compras, nem participo de leilões.

Porém se fosse criado um novo tipo, uma espécie de ranking afetivo, com a história de cada peça da coleção, aí sim, acredito que poderia estar bem colocado, pois nesse plano não há lugar para competição.

Tenho a lembrança de cada amigo, que me trouxe uma carteira diferente, a circunstância como foi conseguida ou encontrada, o momento, o detalhe, a memória e essa riqueza diferente, que traz evocações quando olho a coleção, tem um inegável valor sentimental.

Revendo agora a coleção, ao chegar na letra “F”, veio à memória uma história muito antiga.

Eu tinha menos de dez anos e lembro quando levaram para o hospital um velhinho muito magro, que era zelador de uma casa perto da minha; dias depois fiquei sabendo que acabou morrendo de tuberculose.

Quando retiraram as coisas do quartinho onde morava, eu e outros meninos fomos até lá.

Sobrava pouquíssima coisa da sua pobre existência, juntei de cima de uma pequena mesa, o último maço de Farroupilha, que ele fumava. Dentro ainda havia dois cigarros. Peguei com a ponta dos dedos e, depois em casa, lavei bem as mãos, com medo de ficar tuberculoso. Não contei nada para os meus pais e colei no álbum, evitando tocar diretamente na carteira.

Com receio da doença, quase me desfiz da carteira, encerrando prematuramente a coleção.

Durante muitos anos, sempre que passava por aquela página e via o Farroupilha, eu trancava a respiração, para não contrair a tuberculose do “seu” Euclides.

Hoje, ao ver a carteira, respiro normalmente, porém gosto de fechar os olhos, procurando ver de forma pálida e esfumaçada a imagem curvada do velhinho, sentado num banco, ao lado da porta do quarto onde morava perto do pátio onde, as vezes, brincávamos.. É um jeito especial de evocar a infância.

Na carteira há o desenho de um gaúcho a cavalo, que parece até que está acenando ou talvez se despedindo, numa certa premonição, de que me lembraria dela quando viesse a encerrar a coleção...

A história do Farroupilha “contaminado”, primeiro de supostos micróbios, e, hoje, de reminiscências, não é alegre ou divertida, mas faz parte do conjunto de lembranças, que minha coleção ainda guarda; para ser explorada aos pouquinhos, com as saudades dos tempos da camisa aberta ao peito,pés descalços, braços nus.

Música: SMOKE GETS IN YOUR EYES – Patti Austin



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