UMA TRAGÉDIA DA VIDA CONTEMPORÂNEA

Para ouvir o som clique no botão ao lado.

Agindo como sempre fizera digitou a senha. A tela informou que estava errada. Talvez tivesse colocado algum dedo fora de lugar e isso provocara o erro. Então aconteceu o pior. Era preciso pensar. Não fez automaticamente, hesitou, lembrou os números, titubeou na ordem, mas digitou. Novamente o aviso. Riu. Era aquele sorriso que diziam antigamente: “Está rindo de nervoso”. Não quis vacilar e atacou com firmeza o teclado, colocando os números com determinação. Mas outra vez veio a mensagem. Sentiu as palmas das mãos ficarem úmidas. Parou para refletir. Não era possível, tinha mais quinze senhas para diversas necessidades e agora estava atrapalhado com a do banco, onde tinha ido retirar dinheiro. Não poderia esquecer. Olhou para trás e tinha alguém na fila, interrompeu o devaneio e teclou novamente, constrangido que a pessoa que esperava estivesse entendendo o que acontecia. A tela informava que por motivos de segurança o cartão tinha sido bloqueado, acompanhado de instruções de uma cortesia inoportuna. Saiu do banco e não recorda como foi o percurso até chegar em casa. Não sabia o que dizer, nem o que fazer. Lembra apenas da mulher perguntando se trouxera o dinheiro. Deu uma resposta não ensaiada, que o cartão tinha ficado preso na máquina, deixando entender que tinha sido pane mecânica. Mas quem estava entrando em estado de pânico era seu cérebro. Não conseguiu dormir à noite. Passavam imagens na tela da sua mente, como se fosse uma versão antagônica dos pacatos carneirinhos, eram pequenos diabinhos em forma de números, letras e teclados anunciando que não permitiriam a chegada do sono e se o cansaço vencesse, o pesadelo seria inevitável.

Acordou péssimo. Era para ser uma quarta feira como tantas outras. Lavou o rosto, escovou os dentes, viu o café servido, mas parecia que estava na porta do inferno. Aqueles numerozinhos que ele mesmo tinha escolhido, para facilitar sua vida, tinham de um momento para outro se transformado no seu inferno. Não conseguia lembrar suas senhas. Parecia uma bobagem, um fato banal. Mas estava se dando conta que era o protagonista de uma grande tragédia da vida moderna, que não receberia o mínimo reconhecimento ou comiseração. Por conta do lapso da memória deixava de ser humano e se sentia um verme. Ainda dentro do elevador notou que estava chorando. Ninguém se importaria com ele, iriam rir do seu drama. Tinha múltiplas senhas e não conseguia lembrar nenhuma, misturava os números, ficava nervoso, estava com raiva dele mesmo. Foi ao banco, fez um cheque e sacou quase todo seu saldo. Passou a pagar suas despesas com dinheiro. Recebeu críticas da família, que estava se expondo e poderia ser vítima de um assalto, riu com uma superioridade fingida, dizendo não ter medo. Seguiu representando para os outros, escondendo seu drama. Quando a família estava reunida, fez o gesto mais emblemático. Pegou uma tesoura e cortou seus cartões em pedaços. Ante o espanto geral, proclamou solenemente que não queria ser um servo do capitalismo e do sistema bancário. Só faltou bradar “independência ou morte”. Ele tinha sido derrotado e humilhado por aqueles pequenos retângulos de plástico. Sua vingança pífia era fingir que tinha vencido. Os parentes não o contestaram, seja por respeito ou falta de interesse no que fazia ou deixava de fazer. Era dupla a capitulação. Tentou levar a vida sem os cartões, sem palco, sem público, sem interesse de terceiros. Apenas ele e seu problema. No começo era difícil, a dificuldade foi aumentando e depois entendeu que seria impossível viver sem senhas. Aquelas combinações de números eram indispensáveis para que tivesse a condição humana. Sem elas era um pária.

O bloqueio mental impedia que conseguisse memorizar qualquer senha. Tinha desistido. Houve um momento em que as pessoas mais próximas ficaram impressionadas com ele. Alguém falou em depressão e até em suicídio. Outro amigo estranhou e não entendeu quando o viu entrando num estúdio de tatuagem. Eles talvez não tivessem percebido, mas ali estava o segredo, que iria lhe restituir a vida.

Música – ALL NIGHT LONG – Lionel Ritchie



Compartilhar:


IR AO ÍNDICE