XIRUCA

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O futebol de várzea produz tipos interessantes. O Xiruca era um deles. Bombeiro durante a semana e aos domingos, no campo do Força e Luz, ajudava a carregar os uniformes do seu time. Quando faltava gente, jogava no segundo quadro, que fazia a preliminar da partida principal. Como jogador era bastante limitado, mas na sua fantasia imaginava-se um craque.

Quando eu tinha uns 12 anos, cortava o cabelo na barbearia do Alcides. Lá seguidamente aparecia o Xiruca, mostrando fotografias e comentando como tinha sido seu último jogo. Utilizava aquelas expressões que os comentaristas esportivos adoram. Tinha pretensões a zagueiro e se auto-intitulava : "patrão da área".

Segundo ele, "um beque de verdade deveria ir na bola, do mesmo modo que um morto-de-fome se atira num prato cheio de comida."

O pessoal que já o conhecia, "dava assunto" e deixava correr livre a sua imaginação, com todos os exageros e fanfarronices.

Eram os grandes momentos da sua vida. Nunca esqueci aquelas cenas, que lembravam uma parte mal traduzida da letra de Penny Lane.

Passaram-se uns 30 anos.

Vinha dirigindo em direção ao Centro, quando vi o Xiruca caminhando, bem mais velho e alquebrado. Tomado por um impulso, parei o carro, que ficou um pouco distante do meio-fio.

Desci e o cumprimentei. Ele não lembrava de mim, que conheceu apenas de vista, quando eu ainda era um garoto..

Não entendia muito bem o que estava acontecendo.

O que estaria querendo com um bombeiro aposentado, aquele senhor grisalho, que desceu de um carro novo?

Bandolo. Areia da grossa, areia da fina. Dr. Robledo. Kriptonita. Shazam! Mentalmente invoquei várias palavras mágicas e personagens das histórias em quadrinhos, do meu tempo de infância. Assim como eles, eu também me transformara e estava ali na calçada da av. Protásio Alves, de terno e gravata, mas com o espírito de um menino de 12 anos.

Ele atônito na minha frente.

Algumas pessoas pararam para ver o que estava acontecendo.

Então falei bem alto, para que todos os que estavam ali ouvissem:

-"Vejam senhores, aqui está um legítimo representante do nosso futebol. Do autêntico futebol da várzea. Um zagueirão de verdade: O Xiruca.

Ou passava a bola, ou passava o atacante, os dois juntos nunca. Jogador viril, mas leal. É uma pena, mas hoje não existem mais jogadores como esse. Muito obrigado Xiruca, o nosso futebol deve muito a ti!"

Já tinha se formado uma pequena aglomeração. Cumprimentei-o novamente. Pedi licença e entrei no carro. Sem dizer "aioouuu Silver!", nem "Shazam!", liguei o motor e parti. O rádio tocava Penny Lane.

Olhando pelo retrovisor, vi aquele grupo de pessoas e no meio de todos destacava-se o Xiruca.

Fiquei com a impressão, que ele estava saltando, para cabecear.

Talvez, imitando um imaginário locutor esportivo, estivesse narrando sua própria jogada e gritando emocionado:

"Xiruca, de cabeça, afasta o perigo da área ...“





Música: PENNY LANE – Beatles



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